11.18.2009

A violência totalitária – O braço do terror

Prof.Msc. Ricardo George



A descrição abaixo mostra todo o horror vivido pelos judeus nos campos de concentração, os quais trouxeram à tona toda a capacidade de destruição sistemática do regime totalitário, tanto quanto apresentaram seu principal método de atuação, a violência:

Nas fábricas da morte [...]. Todos eles morreram juntos, os jovens e velhos, os fracos e fortes, os doentes e os saudáveis; não como povo, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, não como bons e maus, belos e feios, mas reduzidos ao denominador comum do mais baixo nível da vida orgânica em si mesma, mergulhados no abismo mais escuro e profundo da igualdade primitiva, como gado, como matéria, como coisa sem corpo nem alma, sem nem mesmo uma fisionomia sobre a qual a morte pudesse imprimir seu selo. É nessa igualdade monstruosa, sem fraternidade ou humanidade [...], que nós vemos, como que refletida, a imagem do inferno. A maldade grotesca daqueles que estabelecem tal igualdade está para além da capacidade de compreensão humana. Mas igualmente grotesca e para além do alcance da justiça humana está a inocência daqueles que morreram nesta ingenuidade. A câmara de gás foi mais do que qualquer um poderia ter merecido, e, frente a ela, o pior criminoso era tão inocente quanto um recém-nascido (EU, p. 198) .



O extermínio silencioso produzido pelas fábricas da morte reduz o significado da existência humana a um nada, em que ser ou não ser não tem significado. Para a crueldade nazista, a descartabilidade do outro era algo certo e necessário de tal forma que o extermínio em massa não reflete sobre o significado da existência do outro e, atropelando todos os princípios, cria uma fábrica de cadáveres, para pôr em frente seu objetivo de domínio total, este que é concebido como meta fundamental, tão fundamental que a vida humana passa a ser secundária em nome do objetivo a ser alcançado. Nessa perspectiva, a violência totalitária atua resguardada pelo Estado, ou seja, o Estado aparece aí como fachada, que possibilita ao monstro liberar seus tentáculos. Usando sua política secreta e agindo sob suas próprias insígnia e vontade, “este [o líder] decide sobre quais categorias sociais incidirão os conceitos de inimigo objetivo ou de sociedade indesejável, tipologias que designam aqueles cuja existência implica discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser exterminados independentemente do que pensem” (Cf. DUARTE, 2000, p. 65). Esse proceder nos leva à compreensão de como o sistema totalitário é capaz de destruir o “humano construído nos indivíduos” , a tal ponto de vítima e carrasco serem atingidos, pois, na medida em que o campo de concentração anula a liberdade de alguns e produz uma matança sistemática de outros, não apenas as vítimas são desumanizadas, mas executores perdem também o sentido da dignidade humana, fato esse que nos revela a forte característica de novidade do totalitarismo, tanto quanto nos esclarece o seu poder de destruição. Nesse sentido, os campos de concentração se apresentam como a principal instituição dos regimes totalitários, não apenas porque eles condensam e potencializam todos os absurdos implementados na textura do social, por essa forma de dominação sem precedentes, mas, também, porque justamente aí se manifesta o objetivo crucial do totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos.

A violência produzida nos campos de concentração ganhou dimensões inimagináveis. É possível afirmar que até os mais competentes roteiristas de filmes de guerra ou literatos do gênero não tenham, até então, colocado em suas obras tamanho requinte de crueldade e horror como fez o totalitarismo nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Essa violência manifesta, sobretudo um novo desafio para a compreensão da política, na medida em que as categorias da modernidade se mostram inadequadas ou insuficientes para dar conta de tamanha ruptura que se apresenta na história da humanidade. O terror entra no cenário político para fincar marcas indeléveis na história dos homens, mas, sobretudo, para provocar um desafio de compreensão, respostas e ressignificação do agir humano, ainda que essa não fosse sua intenção, mas veio à tona em vista de tamanha violência aplicada.

A violência totalitária é apolítica, na medida em que não permite ao outro o direito de manifestar-se. Até as antigas tiranias eram capazes de se encantar com o discurso contrário as suas práticas e até aderir a posições daqueles que em algum momento se apresentaram como inimigo político. No totalitarismo, tal fato é inviável já que o outro não tem direito a compor o tecido social, sendo enviado a confinamentos que destroem sua humanidade ou são diretamente exterminados em câmaras de gás ou com outros recursos, contanto que sejam silenciados. O lugar que ocupa o silêncio no modo de agir do totalitarismo tem significado ímpar, tendo em vista que a capacidade do discurso é sempre uma ameaça. O silêncio ganha importância, o mesmo só deve ser quebrado para exaltar os objetivos do movimento totalitário, o líder e seus símbolos. Portanto, o discurso no totalitarismo tanto é mudo, na medida em que é controlado e direcionado, quanto carente de significado e de poder de denúncia. O único discurso que sobrevive é o do regime totalitário. Fora esse, todos os outros ou se enquadram ou experimentam um último diálogo nos campos de concentração ou câmaras de gás.

Os campos de concentração trouxeram como novidade uma total falta de finalidade, isto é, apresentavam um caráter despropositado em seu agir, “tinham que se financiar a si mesmos e eram praticamente destituídos de qualquer produtividade econômica ou de qualquer finalidade política clara e imediata. Por certo, criminosos e opositores ao regime também foram neles encarcerados, mas a verdadeira natureza dos campos não pode ser compreendida recorrendo-se a esse fato, já que eles só se tornaram abundantes, tanto na Alemanha quanto na União soviética, uma vez sufocada toda oposição. Do mesmo modo, os seus internos, em ambos os países, foram várias vezes obrigados a cumprir trabalhos forçados em regime de escravidão, o que ainda poderia ser humanamente compreensível, pois apresentava precedente histórico. Entretanto, a própria falta de planejamento e de organização dessas tarefas forçadas, somada ao fato de que o trabalho jamais constituiu a regra geral no sistema ‘concentracionário’, denuncia a verdadeira destinação dos campos de concentração: a de não servirem para coisa alguma, senão para destruição da liberdade” (Cf. DUARTE, 2000, p. 68).

A negação e anulação da liberdade humana promovida pelos campos de concentração criaram um clima de destruição do homem, isto é, daquilo que faz o homem ser homem. Artifícios como a liberdade, a pluralidade e a existência de um espaço de convivência política garantem humanidade, enquanto a ausência desses nos leva em direção contrária , mutilando a dignidade humana ou até destruindo-a por inteira.

A violência dos campos de concentração traz no seu interior tamanha força destrutiva, que é capaz de aniquilar o último resíduo humano presente no homem, transformando-o em mero “feixe de reações” (Cf. OT, p. 492) que, por sua vez, pode ser aniquilado sem oferecer qualquer resistência. Tudo isso torna claro que a violência encontra morada nos campos de concentração. Sendo ela “senhora-mor” dessa casa de horrores, conduz forçadamente cada um de seus habitantes, que aí se encontram, a uma certeza: sua dignidade como pessoa está marcada para sempre , pelo menos a dos que sobrevivem.

Cabe agora, exposto os malefícios da violência do terror que nega os direitos humanos, discutir como apareceu no contexto contemporâneo à questão específica da bioética, e como ocorreu seu desenvolvimento histórico e sua ligação com as questões de respeito a vida.


Parte integrante da dissertação de Mestrado Defendida no Progama de Pós-Graduação da UFC - 2006.






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