11.01.2009

TOTALITARISMO E SOCIEDADE DE MASSAS: O ESPAÇO PÚBLICO EM RISCO.

Prof. Msc. Ricardo George

Origens do totalitarismo entra no cenário editorial como um dos textos mais marcantes do pensamento político contemporâneo. Ao tratar do tema ‘totalitarismo’, Hannah Arendt se propõe esclarecer algo que para ela é novo, ou seja, algo que não tem precedentes na história (ARENDT, p. 343). Essa novidade política traz no seu bojo a pretensão de domínio total, o uso da violência e a negação da liberdade. O totalitarismo surge, assim, como sistema negador da política. Apoiado nas massas, nelas encontra terreno fértil para cultivar sua ideologia. No processo de “atomização da sociedade”, fruto da falta de interesse comum das massas e desenraizamento político, o sistema totalitário estrutura seu edifício de terror e domínio total. Nessa perspectiva, encontramos as massas como constituindo a estrutura básica do totalitarismo , isto é, os governos totalitários edificam-se sobre bases que são as massas que eles organizaram politicamente. Podemos perceber, então, que as massas ocupam lugar central no contexto do totalitarismo e servem a esse regime em várias frentes, pois lhes são solícitas quanto à implantação de uma ideologia, já carecem de enraizamento e identidade política. Elas lhes são solícitas quanto ao contingente numérico que fortalecem os partidos totalitários e os também os favorecem com a condução ao poder pelas vias democráticas, como ocorreu com Hitler e o Nazismo na Alemanha do período entre guerras, o que nos conduz à reflexão de que os movimentos totalitários colocaram, à vista de todos, duas fragilidades dos regimes democráticos parlamentares (ARENDT, p. 362), a saber:
a) a crença de que povo, em sua maioria, participa ativamente do governo e,
b) de que as massas neutras e desarticuladas constituem apenas o “pano de fundo silencioso” da vida política da nação.

Nesse contexto de relações frágeis ou até inexistentes entre os homens é que encontramos elementos para afirmar que as massas fornecem material para a construção do que Arendt chamou de movimento totalitário. Cabe aqui a distinção entre movimento e regime totalitários na medida em que Hannah Arendt põe abaixo a máxima segundo a qual uma sociedade democrática não pode conviver com um movimento totalitário. Segundo Newton Bignotto, o que se observou na Alemanha e o que vemos nas sociedades atuais é que as democracias são passíveis de ser usadas pelos movimentos extremistas exatamente porque não podem impedir a manifestação de divergências. Nunca é demais lembrar que Hitler chegou ao poder por meios legais. No entanto, as massas, dadas suas características, só se tornam ativas quando conduzidas por um líder, que lhes empresta um rosto e confere sentido a suas ações.
O papel do líder para as massas funciona como o do pastor de ovelhas para o rebanho de modo que, sem pastor, o rebanho fica sem rumo, e lhe falta à identidade. O pastor é aquele que direciona e que fornece segurança a respeito do futuro: “Ele conhece o caminho”. Essa metáfora nos ajuda a entender a importância do líder, daquele que direciona e conhece o caminho. As massas, então, devotam a esse líder a esperança e aquilo que lhes falta. Agora, fincam raízes sobre a ideologia que esse líder-pastor lhes oferecer, sendo as palavras deste a verdade, e suas bandeiras, a glória. As massas encontram identidade ainda que sob a forma de manobra. É a manobra a grande forma de dominação e controle utilizada pelo movimento totalitário junto às massas, já que o isolamento social é uma de suas grandes características, o que favoreceu a ação do movimento totalitário. A respeito disso nos diz Arendt:

A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do homem de massa não é a brutalidade nem rudeza, mas o isolamento e a sua falta de relação. (ARENDT, p. 366-367).

As massas, nesse contexto, apresentam-se como os habitantes de uma parte destruída do espaço político, isto é, são aqueles para quem o espaço da ação e do discurso não tem sentido, porque já não há nessas pessoas vínculo social ou motivação política, sendo sua grande marca a apoliticidade. Assim, indicam, por sua presença, um espaço público negado, onde ela mesma pode ser eliminada, justamente por não ocupar o espaço público, sendo esse vácuo de ação solo fértil para o controle das massas. É, portanto, sua inércia diante da cena pública que a conduz a manipulações de toda sorte.

Hannah Arendt, em nota de rodapé da terceira parte de Origens do Totalitarismo (p. 366-367), destaca quanto um líder pode fascinar. É evidente que esse fascínio ocorre a partir de circunstâncias específicas e favoráveis. Ora, se levarmos em conta esse “terreno desertificado” em que vivem as massas, que representa toda sua indiferença com o que é da ordem do comum, temos aí as condições favoráveis para o líder aparecer como esclarece Hannah Arendt:

O fascínio é um fenômeno social, e o fascínio que Hitler exercia sobre o seu ambiente deve ser definido em termos daqueles que o rodeavam. A sociedade tende a aceitar uma pessoa pelo que ela pretende ser, de sorte que um louco que finja ser gênio sempre tem certa possibilidade de merecer crédito. (ARENDT, p. 355).


Esse crédito dado a qualquer desvairado só pode dar frutos onde ainda não há frutos para colher, ou seja, só encontra onde fincar raízes onde o terreno for desertificado, a partir do que constatamos serem as massas um grupo extremamente propenso ao nascimento do movimento totalitário.
As massas fascinadas dão todo suporte necessário para o totalitarismo estabelecer sua ideologia, e os recursos utilizados para isso são a propaganda e a violência, que se apresentam como as grandes estratégias de consolidação e manutenção do movimento totalitário. Como público-alvo, ele tem as massas.
A propaganda promovida aparece como o momento antecedente da instauração dos regimes totalitários, contudo vai adiante e o acompanha em todo seu curso de abuso de poder, oferecendo-lhe uma imagem que possa ser cultuada, ainda que à custa da mentira. (ARENDT, p. 357).

A violência, por sua vez, apresenta-se como o marco definidor daquilo que vai ser o regime totalitário, pois sua ação garante aos regimes totalitários o medo e o “encanto” necessários para dar continuidade ao seu propósito de domínio total a partir da descartabilidade de pessoas. O medo aparece para aqueles que, de uma forma ou de outra, se mostram contrários aos métodos do totalitarismo enquanto, para a ralé, o “encanto” representa um sinal de esperteza, apesar da violência dos crimes. Tal é o nível de entrega das massas a essa proposta, que, mesmo quando o totalitarismo destrói os seus, isso não os afeta, como se aniquilar os próprios companheiros fosse um “mal necessário.” Consoante Hannah Arendt:

O que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo de seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazista ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento, mas o fato espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar os próprios filhos, nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. (ARENDT, p. 357).

SILVA, Ricardo G. A. O totalitarismo e a socieadede de massas: o espaço público em risco.In Extratos de filosofia. Ed. UFC. Fortaleza 2009. p.209-221

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