Prof. Msc. Ricardo George
Abordar a questão da política em Marx é necessariamente abordar uma crítica ao modelo de Estado e sociedade imposto pelo capitalismo, haja vista que nesse modelo produtivo e de organização social o que temos é a plena satisfação dos que estão no topo da pirâmide, em detrimento da massa que produz: os operários. Sendo assim, as mais diversas esferas do estrato social: Justiça, Saúde, Educação, dentre outros, servem aos interesses dessa classe. A política, nesse contexto, não se expressa como promotora dos homens e em favor da sua emancipação, ao contrário, sustenta os interesses de poucos, que através dela ocupam o poder. O que nos leva a crer que cabe uma crítica e uma negação dessa política, que expressa a sociedade capitalista. Contudo, cabe investigar se esta é a posição final de Marx sobre a política, isto é, se sua concepção de política se resume à política da sociedade capitalista, ou se este vislumbra a política para além desse modelo. Contudo, vamos iniciar por analisar a questão da crítica à política no interior de sua obra, a começar pela questão judaica.
Marx chama a atenção para a redução que Bruno Bauer realiza ao criticar as pretensões de emancipação política por parte dos judeus. Tal crítica se efetiva pelo fato de Bauer não ter compreendido claramente que o argumento mais contundente deveria ser contra o Estado burguês, consolidado e representante da burguesia, e opressor do proletariado. Contudo, identifica Marx, Bauer não alcançou essa problemática ao ficar preso à querela da religião, diríamos nós que poderia ser até uma caminho interessante para se iniciar a crítica ao Estado, contudo, nessa perspectiva faz-se necessário avançar, coisa que Bauer não efetivou. Sendo assim, Bauer apenas ansiou a laicização do Estado. Para Marx, não seria suficiente para superar as contradições materiais existentes: fome, miséria, dentre outras. Contudo, analisemos os posicionamentos de Bauer.
Bauer se pergunta pelo sentido da emancipação desejada pelos Judeus, e considera tal desejo egoísta e desprovido de sentido, na medida em que deveria pleitear uma emancipação da humanidade e não apenas do Judaísmo enquanto religião que agrega membros.
“(...) Como poderemos vós libertar-vos? Vós judeus sois egoístas, se pedirdes para vós, como judeus, uma emancipação especial. Como alemães devereis trabalhar pela emancipação política da Alemanha e, como homens, pela emancipação da humanidade”(...) Por que seria então penosa a opressão particular, se aceitam a opressão geral? Por que razão deve o alemão estar interessado na libertação do judeu, se o judeu não se interessa pela libertação do alemão, ” (Marx, 1964.p.35)
A seqüência dos posicionamentos de Bauer sobre a questão judaica se agudizam com a pergunta que o mesmo faz sobre a natureza do judeu e do Estado cristão que o emancipará. Tal indagação visa considerar o extremo de contradição vivido pelo judeu a desejar tal fato, pois, para Bauer, a questão posta esta reduzida ao foco da pergunta que ele põe, ou seja, o judeu precisa enxergar que o problema político por ele colocado está fora de foco, na medida em que não é possível emancipação enquanto houver a curta compreensão religiosa presente. Assim sendo, Bauer propõe a superação do Estado religioso, verdadeiro foco de atraso e antagonismo, pois a mais forte forma de oposição existente nesse contexto é a oposição religiosa. Bauer destaca então que só é possível emancipação quando se realizar a emancipação da religião. Então, o problema central para Bauer recai na direta relação entre Estado e religião.
Marx analisa o argumento de Bauer e encontra no mesmo uma fragilidade, na medida em que considera o centro da problemática sem considerar suas raízes. Em última instância, Bauer acredita na política burguesa da organização capitalista, e, por conseguinte, na sua formulação jurídica enquanto Estado, pois reduz a problemática de análise da política, do Estado, e da emancipação humana apenas no aspecto religioso, não alcançando, assim, o real problema da política nos moldes da democracia burguesa, que se expressa como alto-contemplação na medida em que esta política só satisfaz o interesse da classe dominante, que via de regra ocupa o poder nas esferas institucionais do Estado. Bauer, para ser contundente, precisaria ter considerado o Estado como tal, isto é, como instituição, independente de sua “máscara social”, ou seja, para além de elementos de adorno do Estado como a religião. Não é a religião que define o Estado ou seus interesses, mas o modelo de organização produtivo subjacente a ele. Sendo assim, a crítica de Bauer ficou fora de foco, por não considerar o aspecto político da sociedade capitalista que fornece os elementos substanciais a esse Estado. Nos diz Marx:
“A critica teria ainda de fazer uma terceira pergunta: que espécie de emancipação está em jogo? Que condições se fundam na essência da emancipação que se procura? A critica da própria emancipação política era apenas a crítica final da questão judaica e da sua dissolução na-questão geral da época - Devido ao foto de não formular o problema a este nível, Bauer cai em contradições. (...) Quando Bauer, a respeito dos que se opunham à emancipação judaica, afirma: O seu único erro foi apenas pressupor que o Estado cristão o único e que não tinha de submeter-se à mesma critica que o judaísmo – vemos o engano de Bauer no facto de só submeter à crítica o – Estado cristão – e não o Estado como tal, de não examinar a relação entre emancipação política e emancipação humana e, portanto, de pôr condições que só se explicam pela confusão acrítica da emancipação política e da emancipação humana universal. ” Marx, 1964.p.39-40)
Bauer não alcançou a problemática central segundo Marx, e realizou uma série de confusões em torno da questão, a saber:
I. Tomou o problema da emancipação humana reduzido à emancipação política.
II. Considerou uma crítica religiosa como crítica ao Estado.
III. Reduziu o conceito de Estado a Estado religioso, e, por isso, não considerou suas implicações.
IV. Realizou uma crítica ingênua da Política e do Estado na medida em que passou a defender e acreditar que apenas a secularização dessas instituições cumprisse o papel da emancipação humana.
V. Não considerou o aspecto estrutural do Estado capitalista, que mesmo se afirmando laico mantém em si um modelo religioso de organização, na medida em que o Estado cumpre o papel de mediador entre o homem e sua liberdade, como faz a religião na esfera do reconhecimento metafísico do criador com a criatura.
VI. Tomou como pressuposto a relação entre emancipação política e religião, quando para Marx seria mais coerente esta verificação através da relação entre Emancipação política e Emancipação humana.
Entendemos, pois, que Marx considera insuficiente a análise de Bauer em vista do exposto, além do que o elemento político no Estado capitalista não garante a emancipação humana como conquista dos homens e mulheres socialmente organizados, mas emerge como benefício da gerência do Estado, que garante direitos aos cidadãos de maneira formal, mas não substancial. É verdade que esses direitos existem desde a emergência da Revolução Francesa como direitos fundamentais do homem e do cidadão, tais como: o direito à propriedade, à Educação, à liberdade, à Igualdade. Contudo, esses se expressam apenas na forma da lei (formalmente), mas não alcançam o real existir dos membros da comunidade, isto é, na vida concreta (substancialmente), estes não se manifestam a não ser como o mínimo necessário à perpetuação de uma classe de operários que servem à classe dos produtores, de tal maneira que o Estado político emerge como comunidade ilusória, isto é, como instituição política é incapaz de promover a igualdade social, a justiça e a liberdade.
O que se pode concluir até o presente momento é que a política não representa os ideais de emancipação humana, portanto o Estado político que nasce dessa manifestação política também não representa tais ideais, ao contrário do que pensava Bauer, que punha toda confiança no Estado político em detrimento do Estado religioso como se a simples superação desse Estado religioso pudesse emancipar a humanidade. Bauer não considerou, como antes foi destacado, a insuficiência dessa superação, haja vista que o Estado político continuará com aspectos de Estado religioso, na medida em que todos os aspectos da vida egoísta continuam a existir na sociedade civil. Diz-nos Marx:
“Onde o Estado político atingiu o pleno desenvolvimento, o homem leva, não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla existência – celeste e terrestre. Vive na comunidade política, em cujo seio é considerado como ser comunitário, e na sociedade civil, onde age como simples indivíduo privado. (...) O Estado político, em relação à sociedade civil, é precisamente tão espiritual como o céu em relação à terra. Mantém-se em idêntica oposição à sociedade civil, vence-a da mesma maneira que a religião supera a estreiteza do mundo profano; isto é, tem sempre de reconhece-la de novo, de restabelece-la e de permitir que por ela seja dominado. O homem na sua realidade mais intima, na sociedade civil, é um ser profano. Precisamente aqui, onde aparece a si mesmo e aos outros como individuo real, surge como fenômeno ilusório.” ( Marx, 1964.p.46)
Até aqui buscamos demonstrar a crítica de Marx à política e ao Estado tomando como centro de investigação a Questão Judaica, contudo sabemos que em diversos outros textos, essa problemática retorna no contexto teórico de Marx. Textos como As Glosas Críticas à margem do artigo “O Rei da Prússia e a Reforma social”, A Guerra Civil na França (1817), As Lutas de Classe na França, O 18 de Brumário, O Capital e o Programa de Gotha, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, dentre outros. Embora existam nuances significativas no contexto geral, tratam de uma crítica à Política, ao Estado, e a suas formas de apresentação no interior da sociedade capitalista. Tais textos passaram a significar, no entanto, para um número considerável de estudiosos do pensamento de Marx, uma posição radical de condenação à Política. Nosso texto quer, nesse sentido, ser um provocação reflexiva sobre tal questão, e deixar em aberto uma discussão sobre algo que a tanto vem se pondo como questão já fechada, a saber: Marx é contra toda manifestação política. Seria, portanto, impossível conceber emancipação humana e política. Em outras palavras, conquistada a emancipação humana não seria mais necessário nenhuma forma de política.
No início do segundo tópico, apontamos essa questão como problema a ser enfrentado. Quando nos referimos à problemática da política indagávamos se esse seria o posicionamento final de Marx. Tendo em vista o profícuo trabalho acadêmico já desenvolvido em torno do mesmo, e as exposições que traçamos acima, parece claro a assertiva que confirma o fim da política em uma sociedade emancipada. Contudo, gostaríamos de destacar algumas reflexões em torno da questão. Vejamos: Parece-nos que a crítica à política em Marx é clara e contundente, no entanto essa crítica é historicamente localizada enquanto crítica da política desenvolvida na sociedade capitalista, de modo que ao elaborar uma negação da política, Marx não está negando a ação dos homens enquanto organização, mas enquanto modelo de opressão desenvolvido pelo capitalismo e pela concepção de democracia burguesa. Podemos superar o Estado como organização política, contudo nos parece que Marx entende a política para além desse modelo do capitalismo. É verdade que expressões de primeira grandeza da tradição marxiana interpretaram a questão de forma a expurgar em uma sociedade emancipada a política, apontando a ausência de necessidade da mesma. Assim é, por exemplo, o posicionamento de Lênin a respeito dessa questão, quando expõe as situações históricas da comuna.
“(...) Em lugar de instituições especiais de uma minoria (funcionários civis, chefes do exército permanente), a própria maioria pode desempenhar diretamente as funções do poder político, e, quanto mais o próprio povo assumir essas funções, tanto menos se fará sentir a necessidade desse poder.” (Lenin. 1983.p.18)
Contudo se observarmos com cuidado e atenção a devida citação, acima proposta, entenderemos que o próprio Lênin destaca o fim de um modelo político para a substituição de outro. Nesse sentido, o que deve findar é o modelo classista de Estado que privilegia uma minoria de funcionários pagos para responder às necessidades dos donos dos meios de produção, ao contrário disso, em um modelo emancipado de sociedade, a maioria organizada em comunas assume o poder político. Temos, portanto, um sentido de política enquanto ocupação do espaço público pelo povo, e, verdadeiramente pelo povo, à medida que temos um nivelamento das funções e da distribuição das riquezas. Por conseguinte, o que temos é um modelo político muito próximo ao sentido Grego de fazer política, como cuidado de todos por todos, e não de uma minoria privilegiada que se esconde atrás de status institucionais para garantir privilégios. E diríamos, a partir do melhor sentido de compreensão da política grega, no tocante a todos os cidadãos poderem se apropriar da polis, superando a visão de que apenas alguns são cidadãos.
Marx, segundo Lênin, propõe claramente o fim do Estado burguês e seu modelo político de organização, e não o fim da política como atividade constituída do existir social dos homens, de modo que propõe um novo modelo de organização que seria a princípio um governo da classe operária, como nova forma política de organização.
“ A multiplicidade de interpretações a que a comuna deu lugar, a multiplicidade de interesses que nela encontraram expressão provam que foi uma forma política inteiramente expansiva quando as formas anteriores eram expressamente repressivas. Eis o verdadeiro segredo: era ela, acima de tudo, um governo da classe operária, o resultado da luta entre a classe que produz e a classe que açambarca o produto desta, a forma política, enfim encontrada, sob a qual era possível realizar-se a emancipação do trabalho[e do homem] grifo nosso.” (Lenin. 1983. p.23)
Queremos, com isso, ter oportunizado a provocação a respeito dessa leitura e tomamos Lênin para pautar-nos também pela tradição marxiana. Contudo, é diretamente no texto de Marx, deixando o autor falar por ele mesmo, que buscamos construir essa argumentação . Entendemos que Marx tem a política burguesa da sociedade capitalista como uma erva daninha a perpetuar os donos dos modos de produção no poder. Assim, toda pretensa emancipação até hoje realizada não foi capaz de introduzir de forma contundente a humanidade nesse processo, haja vista que os pretensos libertadores políticos, diz-nos Marx, reduzem a cidadania a uma comunidade política. Neste contexto, o citoyen, ou seja, o homem verdadeiramente autêntico, surge como servo do bourgeois, ou seja, o homem da sociedade cível, isolado, atomizado, e imerso no seu egoísmo. Portanto, é ilusório qualquer emancipação que busque garantir direitos, mas não supere a estrutura lógica do capitalismo. Consoante Marx:
“ A Emancipação política é ao mesmo tempo a dissolução da antiga sociedade, sobre o qual assentam o Estado e o poder soberano estranhos ao povo. A revolução política é a revolução da sociedade civil. (Marx, 1964.p.60)
Por conseguinte, parece-nos que essa linha de pensamento não recai sobre o sentido da política em Marx, haja vista que o pensador em questão apresenta posicionamentos em favor de uma contínua organização dos homens em prol da emancipação humana. Para ele, toda emancipação traz no seu bojo uma reestruturação das relações e do mundo vivido pelos homens. Assim sendo, só é possível emancipação com resultados substanciais para a humanidade como segurança, justiça, moradia, educação, e direitos constituídos no existir das pessoas. Por isso, para Marx o sentido de emancipação liga-se ao de um sentido de política, isto é, do homem manifestado no espectro do convívio social, como ser genérico, constituído de significado, e materialmente emancipado. Assim, nesse contexto passará a conviver plena e sucessivamente como homem organizado através de uma força social instaurada como força política. O que nos leva a entender que Marx concebe uma política para uma sociedade verdadeiramente emancipada. Em suas palavras:
“ A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato, quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico, e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política” ( Marx, 1964.p.63)
A presente citação nos remete a uma compreensão outra do sentido de política em Marx usualmente divulgado, levando-nos a considerar, por ela e por outras passagens do texto marxiano, o entendimento de que Marx condena sim o Estado e propõe sua superação, contudo a política não é o Estado, e se há uma política a ser superada sem sombra de dúvidas é a política do democratismo burguês que não emancipa o homem em seu significado de existência concreta ao contrário, o toma como portador de direitos universalmente postos sem atingir sua vida e necessidades concretas.
Assim, podemos concluir, pelo menos a nível desta provocação, que quando Marx persegue em toda sua trajetória de análise da sociedade capitalista e da condição do homem nesta, o entendimento de política faz-se a partir da concepção de uma emancipação do humano e do social em direta oposição à emancipação política, destacando, inclusive, o absurdo de emancipação social com alma política. Isto se dá por que a emancipação política carece de efetividade concreta de direitos, ficando sempre numa universalização abstrata, que subsiste graças à oposição entre a vida genérica do homem e sua vida individual. Assim sendo, ao contrário de muitos, Marx não nega a política, mas a entende como mecanismo da revolução humano-social, na promoção de uma verdadeira emancipação humana que supera o Estado e suas contradições, e coloca o homem no centro da construção da vida pública, como ocorreu na rápida experiência da comuna.
Referência bibliográfica
LÊNIN. V.I. O Estado e a Revolução. Editora Hucitec. São Paulo, 1983.
MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1980.
________. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
________. A guerra civil na França. São Paulo: Global, 1986a.
________. As lutas de classes na França (1848-1850). São Paulo:Global, 1986b.T & M
________. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. [Trad- Artur Morão]. Edições 70. Lisboa. Portugal.1964.
Fagmento do Texto, Submetido a revista Labor UFC.